Sempre nutri o desejo de guiar-me por um projeto crítico em que se dialoga distintas tradições. Similar, em espírito, ao que foi a Cinema & Film; ou desestabilizar, consciente, o “Mito do Filme de Vanguarda”. Porém, os tempos mudaram; os meios como os filmes chegam em cada um também. Me conforta, entretanto, que nos últimos anos ainda haja esforços de ativação crítica, que as trocas entre tradições ainda existam e, provavelmente, estão caminhando para o seu auge. Pois o fenômeno tornou-se possível, em tal magnitude, especialmente pela troca de materiais: a difusão de filmes, de textos (revistas inteiras), de livros, a capacidade de posicionar estes conteúdos em perspectiva/comparação, bem como pela possibilidade de contato entre interessados, não somente em região nacional, mas entre interessados ao redor do mundo.
No entanto, o entusiasmo por pesquisas e tentativa de diálogo restringe-se somente no interior de determinados ciclos. Dentre aqueles que eu tenho percebido, incluo frações dos curiosos de Nova Iorque, de parte da Espanha e parte do Brasil. Frações estas que adquiriram sua maturidade e que, em contraste com os esforços “mainstreaming” promovidos pelas capas de revista, recusam-se a aceitar passivamente aquilo que lhes é oferecido. Exatamente, o oposto: empenham-se em investigações, manejos genuínos e espontâneos conduzidos de puro interesse em busca de novas obras, novos textos e novas discussões. Menciono “ciclos” porque, precisamente, é o que se observa de certa distância: os envolvidos são tanto os espectadores, quanto são, também, os programadores, os escritores, os pesquisadores, os engajados e, em casos, são até mesmo os próprios cineastas. Mesmo a noção da palavra “autossustentável” se revela insuficiente. Na verdade, está mais para “dialético”. Uma evidência disso pode ser acompanhada no fato de que: nos locais mais férteis, há ainda mais fervor crítico depois (como foi a recente Retrospectiva de Robert Beavers, em Nova Iorque; a exibição de Frans van de Staak por salas na Espanha; a atividade de cineclubes no Brasil) ou antes (como será a exibição de Vittorio Cottafavi e Luc Moullet em alguns meses) de exibições.
As operações intelectuais inscritas no interior dessas movimentações específicas, encontram-se, assim, rodeadas de um sentimento de empolgação (seja em antecipação pelo que verá ou resposta pelo que viu). Além disso, é possível, hoje, acompanhar tais agitações a partir de inúmeras localidades. Isto significa que além dos ciclos dialéticos (como os de regiões como Nova Iorque) que agem dentro desses sistemas, há a potencialidade de que estes exerçam influência mútua entre si (em outros países, outros estados). A ideia se fortalece ao constatar que algumas dinâmicas são impulsionadas pelos esforços provenientes de outras províncias (um exemplo é a disponibilização, vinda de brasileiros, de revistas interessantíssimas, as quais serviram de base para desenvolvimento de tradições inteiras; outro seria a coleta e estudo de informações e escritos de locais como a Espanha que o restante do mundo partilha). Portanto, sou levado a acreditar não só no contato, mas na simbiose desses ciclos. Isto é: o que vemos manifestando-se desses espaços não são somente porções deles, mas o resultado do contato, da associação conjunta entre todos (publicações recentes, apresentadas em forma de revista, deixam evidente).
Nesse sentido, devo escrever também que todo o empenho e compartilhamento, originados em determinadas regiões, desdobram respaldos e reforços quando existem trabalhos de tradução para os respectivos idiomas dos animados. Eu não escrevo em inglês, francês ou espanhol; não pretendo fazê-lo. Escolho a língua portuguesa por considerá-la um dos dialetos mais belos e ricos que conheço, sendo também aquela em que fui educado. Espero que vários dos textos em português sejam traduzidos para mais pessoas de outros lugares algum dia (e que escritos em diferentes vernáculos sejam transferidos para suas versões portuguesas), mas eu não serei a pessoa a caminhar por tal ocupação. Justamente para que outros traduzam; para que aconteça um diálogo e um envolvimento. Estes serviços asseguram, em suas mais atraentes discussões, os traços de conexão entre figuras como Douglas Sirk e Kenneth Anger (há de se iniciar um estudo entre Sirk e as vanguardas americanas); ou ainda entre Howard Hawks e Ernie Gehr; Michael Snow e Straub/Huillet (o entrelaço direto poderia ser Fortini/Cani); quiçá entre Andy Warhol e Júlio Bressane. Ou seja, uma rede de possibilidades para se conectar e explorar. E a “nova cinefilia” está marchando para esta direção, questionando-se dos atrasos que rodearam os anos que se passaram.
Não se trata, quero deixar claro, de sugerir que tudo mencionado por mim seja inédito; em outras palavras, dizer que na história, conexões dessa natureza nunca tivessem tomado partido (no primeiro parágrafo deste pequeno artigo nomeei uma delas). Mas é que os meios atuais (digitais) intensificaram a circulação e o intercâmbio em níveis extraordinários. Alcançando um estágio onde periódicos reúnem colaboradores desde Londres até o Brasil, sem que haja um eixo ordenador, uma centralização que leva, propriamente, ao jornalismo e não à crítica. Por motivos da presença de interesse (o espontâneo). Se estamos a dez anos de estarmos a dez anos, é melhor o tempo correr para acompanhar as circunstâncias que estão nos levando para o centro da mina de ouro.
Giovanni Silveira,
02 de Agosto, 2025
Comentários
Postar um comentário