DISTRIBUIR, TRANSMITIR: OS FILMES DE FLO MAVY
De quando foram lançados, eu inicio por Tree Limbs (2025), filmado na região sul de Isère, na França, o filme começa com uma imagem negra, com títulos em uma fonte branca em 180° opostos que desaparecem depois de alguns segundos, ainda chamando sua atenção para as diagonais da tela. Antes que surjam as primeiras cores (trata-se de um filme colorido!), acontece o que muitos nomearam por "não-imagem". Os títulos debandam e apenas a imagem negra permanece. Um espectador comum iria imaginar que um corte apresentaria as primeiras “imagens”, algum tipo de explosão de figurações negando e operando em contraposição com a cor (ou não-cor?) sólida antes preenchendo os limites da tela, mas esse espectador se engana, pois as primeiras cores surgem suavemente, desfocadas, como se toda aquela “ausência” significasse nada mais que uma descrença. Todo aquele processo já se mostra imagem em si própria. Contudo, isto não se configura como “enganação”, quando se engana alguém, se esconde algo; aqui, o extremo oposto acontece: é a solicitação total para uma atenção especial por parte do espectador, um convite para que ele engaje com o que ainda verá, que mantenha sua atenção com aqueles processos. Aproveitando-se, continuamente, a câmera parece atravessar espaços não compreensíveis, viajando por entre aqueles pigmentos; a atenção do espectador já está integrada, então uma nova imagem negra surge: o mesmo processo anterior? Não, um corte, isto é, uma transição instantânea entre planos. Um piscar de olhos em elipse. Aquelas luzes sem foco, aqueles espaços, todos eram parte de um arbusto de flores. Provavelmente a luz solar incidindo nas pétalas e refletindo tais colorações. Ou seja, um mundo, um ritmo inteiro a partir de um arbusto florido. Escrever de “mundo” aqui é proveitoso em todos os sentidos do termo, na maioria de seus contextos, porque Flo Mavy não se limitou às flores daquele pequeno local. Na verdade, depois de todo aquele eixo (floral), há um bosque completo para ser explorado, possivelmente filmado em seus detalhes mais próximos, em seu ritmo mais cuidadoso. Uma área aberta geograficamente através da rodagem pela região e a câmera de Mavy analisando tais lugares. A ação se desenrola à maneira de um cartógrafo que traça suas rotas ao mesmo tempo em que as percorre sobre o próprio mapa (compartilhando-o com interessados). Esta impressão se reforça por outra particularidade, a qual prolonga a atenção durante o encadeamento das imagens: a falta de qualquer som (trata-se de um filme silencioso!): que apenas acompanharia aqueles planos e os tornaria lógicos demais em algumas situações, em alguns cortes. Toda a informação conserva sua importância.
Os filmes de Flo Mavy manifestam, de forma extremamente sutil, mas precisa — como descrito acima —, uma ênfase deliberada por uma atenção do espectador, promovendo certa proximidade, uma transmissão simpática e terna; e a cineasta realiza tal gesto valendo-se do que a circunda, recorrendo àquilo que se deixa ver e tocar. Em Feuilles vertes (2025), há três planos iniciais que soam desvinculados do restante (não em ritmo, mas textura), entretanto, a propriedade funcional deles parece pôr em relevo o verde (cor que também figura no título). Isto, porém, me remete a uma contradição que não se revela presente nos pontos mais fortes do trabalho de Mavy: a negação de uma hierarquia soberana, de uma pirâmide de poderes onde isto é maior/melhor que aquilo. Na verdade, sua virtude é posicionar os objetos no mesmo nível, conferindo-lhes igual importância, para então desvelar, a partir disso, suas nuances e diferenças. Ainda assim, os planos que se seguem já manifestam suas potências mais significativas: um caminho de tijolos sombreados pela silhueta de alguma árvore movendo-se delicadamente enquanto a câmera está estática, cortado para um plano desfocado de montes de folhas alaranjadas caídas no chão e reunidas em uma panorâmica para a esquerda, e apenas no corte seguinte é que emergem as primeiras “folhas verdes”, utilizando-se da câmera estática novamente. Outra sequência de três planos, agora com capacidade de relação entre eles mais aguçada. As folhas do último plano estão ralas, é por isto que aquela silhueta está alongada e afinada, pois suas folhas estão no solo, caídas e secas. Mas apenas olhos bem treinados (por filmes da própria Mavy) enxergariam com tanto afeto a edição articulando as articulações do mundo. As folhas verdes se fazem visíveis apenas depois da contextualização do espaço, pois embora este seja o título, elas não são mais importantes que os outros montantes de bilhões de átomos que fazem parte do entendimento do meio.
Em Les ruines du château de Seyssuel (2025), gravado na pequena comuna francesa, primeiro dos que se podem apelidar informalmente de “filmes de Seyssuel”, o primeiro plano após os títulos iniciais é composto por rochas de coloração esverdeada, a perspectiva do espectador está inerte (diferente da vegetação, rochas não se movem); nestes segundos, é como se o tempo se esvaísse, o cérebro do espectador tenta, com esforço, discernir padrões de sombra que formem algo que, porventura, escape da visão imediata. Isto é, as faculdades cognitivas são ativadas, se difundem processos complexos com apenas instantes. O fato é que o mesmo plano entra em movimento e, entretanto, a câmera permanece no mesmo ângulo: a perspectiva é que se desloca. Assim, todas aquelas rochas se misturam e tornam-se difusas, uma confusão de cores e linhas com as mais belas propriedades; o fluxo constante na câmera digital parece tentar corrigir as imagens, o que causa uma espécie de efeito do trauma visual. Também acertado quando uma linha desponta dos limites do quadro: são trilhos! O plano continua por 40 segundos. O corte subsequente, após um pequeno interlúdio de tela negra, sintetiza os procedimentos que acompanhamos. Uma câmera estática, acompanhando o movimento das folhas se misturando e somando em novas formas, inalterado em seu ângulo. Eu disse à Flo Mavy que ao ver aquele plano de entrada pela primeira vez, imaginei sons estrondosos de trilhos. Aparentava correto adicioná-los, mas quem estava errado era eu. Imagine que, antes mesmo de vermos os trilhos, já estivéssemos ouvindo o trem; ou que, em vez de apenas sentir o tempo esvair-se enquanto observamos as rochas, pudéssemos, de antemão, adquirir ideias das articulações que testemunharemos. O plano perderia suas maiores forças em prol do som que nos confortava à priori. Em acréscimo, o filme segue a estrutura de uma viagem, partimos do trem e chegamos às ruínas; estas estão no título, e podem, inclusive, ser entendidas como o tema principal, mas Flo Mavy vê todos os arredores como indispensáveis. Qualquer modificação naquele espaço, modificaria também a percepção sobre o espaço. Esta é das maiores provas de um cuidado, de fato um zelo especial pelas texturas e o modo que a câmera registra (e aquilo registrado). O leitor atento notará que me concentro em apresentar alguns dos processos iniciais dos filmes; os demais, no entanto, ficam sem menção, isto porque há vários deles, e uma análise minuciosa de cada filme permitiria formulações mais assertivas. Quebro a “regra”, contudo, para mencionar algumas sequências próximas do fim: um feixe de luz rompendo com um furo no teto do que parece ser uma gruta, iluminando o solo rochoso como no primeiro plano. Uma bela metáfora para a própria luz que circunda toda a relação de Mavy com sua câmera. Estes planos dão lugar a um enquadramento aproximado de flores de cor rosa em um corte: choque visual. Flo Mavy está se referindo, precisamente, à velocidade da luz!
Espero que mais pessoas possam assistir aos filmes aos quais me refiro. Pois vários outros ainda surgirão. Desde Tree Limbs (2025), houve um refinamento do trabalho de Mavy, cada um recebendo das melhores articulações e ideias que a cineasta pode entregar. L'Aqueduc de Seyssuel (2025), segundo dos “filmes de Seyssuel”, gravado na Trilha de Gorneton, é a última obra lançada por Flo Mavy. O início dá-se com uma panorâmica que segue, lentamente, por entre os altos ramos de uma árvore, deixando ver toda a sua copa. Mas, assim como Feuilles vertes (2025), este plano destoa do restante, não conversa bem com as outras sequências. Um tipo de textura que simplifica em cores sólidas (em sua maioria tons de branco, vermelho e preto) aquela filmagem. Em seguida, após a passagem em tela negra de alguns segundos (isto isola ainda mais o primeiro plano), duas imagens um tanto distanciadas de uma área de vegetação, em que a câmera repete operações de zoom in e zoom out desfocando a imagem e a pondo em foco novamente, se as mencionarmos em termos “meat-ineffable”, de Stan Brakhage, as duas tomadas adquirem um status de contraste entre as diferenças “naturais” (de pigmentos à texturas) que ao mesmo tempo não são negadas em seu modo bruto e recebem seu próprio tempo. As imagens convertem-se em uma lembrança de que toda a percepção humana da visão é baseada em luz — refletida, frações negadas; tal constatação evoca no espectador não uma relação passiva daquilo que vê, mas o convida diretamente a fazer parte desses movimentos: a pensá-los enquanto os observa. A cineasta aceita, de braços abertos, a parcela que foi rejeitada pelos objetos. Há, mais para frente ainda, outra imagem que parece de alguma forma sintetizar o trabalho composicional de Mavy. Subsequente de um plano que reavalia aquele primeiro, no qual interagia com suas texturas simplificadas ao extremo, tem-se a imagem distanciada (em um tripé), e em camadas de profundidade, de um pequeno assento de madeira branco em meio aos níveis de natureza que o rodeiam, neste assento quem está sentada é a própria cineasta: analisando seu entorno, tentando de alguma forma engajar com sua visão.
Giovanni Silveira,
23 de Julho, 2025.
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